quarta-feira, 14 de janeiro de 2009


A Flora nossa de cada dia nos dai hoje !

Patrícia Pillar e Ary Fontoura já estavam consagrados como atores. Mas, em “A Favorita”, eles ultrapassaram todos os limites da perfeição profissional. A atuação foi tão esplendorosa que até mesmo atores fraquíssimos foram progredindo com eles na contracena. Tirando o péssimo Zé Bob(o) (tão fraco que esqueci o nome do ator), que patinou o tempo todo, vários foram os novatos que amadureceram bem ao terem de atuar com os dois.
Um destaque, neste caso, é para Murilo Benício. Não é mais um jovem ator. Todavia, sempre deixou a desejar. Nesta novela, ao participar do triunvirato do crime, ele conseguiu entrar realmente no palco.
É claro que o destaque maior é para Patrícia Pillar, que na pele de Flora não deixou para ninguém mais. Eu não via algo tão perfeito (com as devidas proporções de estilo, tempo e, é claro, a postura de época) desde o “Dr. Valcour”, feito por Sérgio Cardoso.
Flora causa todo sentimento dúbio que não queremos ver aparecer em nós mesmos. Toda sua vontade de poder, o seu desejo de mandar e, enfim, sua tara por vingança – sabe-se lá do quê – se associa perfeitamente à sua fantástica beleza não-bela. Trata-se da beleza de Patrícia Pillar, é claro. Mas a atriz tinha uma beleza dócil. Chamada para utilizar a beleza dócil junto com a beleza má, autoritária e um pouco doentia, ela transitou nisso como uma campeã de patinação. Tirando Luís Gustavo e Plínio Marcos em “Beto Rockfeller”, nada foi tão espontâneo no teatro e na TV como o modo de Flora ser Flora.
Como Flora, Patrícia Pillar conseguiu fazer de nós, em determinados momentos, tudo que desejamos esconder não só de nós, mas principalmente de nossos filhos. Flora é o nosso Tony Soprano de saias. Sua vingança contra o mundo nos ganha. Todos os dias somos injustiçados por um Terceiro Mundo perverso, que só nos tira direitos. Então, uma personalidade como Flora, na vida dada a ela por Patrícia Pillar, tem tudo para nos trazer para o seu campo. Pegamo-nos torcendo para a vilã.
Flora não é Odete Roitman, de “Vale Tudo”. Aquela maldade envelhecida não nos conquistava. Flora não é Frau Herta, interpretada pela fantástica Norma Blum, na primeira versão de “Selva de Pedra” (Romance de Lygia Fagundes Telles que virou novela em 1981). Herta não tinha jogo de cintura. Flora é, antes de tudo, a moça que tentou cantar no seu estapafúrdio casamento com Dodi, para uma platéia paga, e nem mesmo assim arrancou palmas. Então, chorou. Um choro que surgiu como dor, mostrando aquele nariz adunco de Patrícia Pillar; e como essa moça sabe o usar esse nariz em poses muito bem estudadas. Quando má e triste, o nariz aparece de perfil, lembrando a transformação da Rainha (de “Branca de Neve”) na bruxa. Quando deslumbrante, o nariz aparece no meio perfil. Quando boazinha (fingida, é claro) o nariz aparece um pouco mais de frente. O sorriso de Patrícia é perfeito, alterando-se em cada posição, para acompanhar o nariz e o jogo dos cabelos encaracolados. É como se não existisse Patrícia Pillar, e somente Flora. Não é um trabalho de atriz dando vida a um personagem. É o trabalho de um personagem que tem vida. Fora existe. Duvido que Ciro Gomes consiga dormir em paz ao lado de Flora.
Dizem que Patrícia Pillar deixa a Globo louca, pois quer refazer cada cena até chegar à perfeição. E chega. Como sempre, o trabalhador faz a empresa ser melhor do que realmente é. Mas, no caso de Patrícia, ela irradia capacidade para além de Flora. Dodi pega isso. Silveirinha não precisa pegar, basta ter Flora para ele ser quem ele sempre foi – a criação também com vida feita por Ary Fontoura, um ator para além de qualquer limite.
Patrícia Pillar deveria ser chamada para uma campanha nacional em favor do bom profissionalismo, em favor de algo como “seja você uma pessoa competente”. É claro que em muitos lugares, você perderia o emprego, pois no Brasil a maior parte das instituições não quer trabalhadores inteligentes e capazes. Nem a Globo quer. E não pense que a Globo precisa de Patrícia Pillar. É que Patrícia Pillar tem conseguido exigir, tem conseguido dizer: “sou boa, não vou aceitar ser ruim”. É muito difícil isso, e não sabemos se isso se repetirá com ela. É muito difícil isso em um lugar onde a mediocridade é a regra – não por culpa de alguém em especial, mas por conta da mentalidade da indústria do entretenimento no Brasil, que na busca de fugir de “programa cabeça” foge também do bom programa.
Há medo de apostar no trabalho bem feito no Brasil. Patrícia Pillar vai na contramão. Só por isso, eu desejaria ver Flora se sair bem no final de “A favorita”. Pena que vai imperar o moralismo barato.

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